In: LUKÁCS, g. História e consciência de classe, São Paulo: Martins Fontes, 2003, pp. 133-192.

I. Percurso geral do texto

II. hipóteses sobre lukács e hegel

A Consciência de Classe em Lukács

O texto ‘Consciência de Classe’ de Lukács é dividido em cinco partes. Na primeira parte, Lukács busca dar conta do significado teórico do conceito de consciência de classe, ainda nas suas determinações conceituais abstratas; nesse âmbito, a categoria fundamental que devém e que articula teoricamente esse objetivo é a categoria da ‘possibilidade objetiva’. Nesse âmbito, a vinculação com a dialética hegeliana aparece mais claramente no processo da argumentação, [a precisar]. Na segunda parte, trata-se de demonstrar por que somente no capitalismo é possível a produção racional da categoria de consciência de classe. Na terceira parte, trata-se de demonstrar por que apenas as duas classes pura do capitalismo, burguesia e proletariado, “permitem imaginar um plano para a organização de toda a sociedade”. Na quarta parte, trata-se de determinar a função única da consciência de classe para o proletariado, isto é, o caráter distintivo desta consciência no caso desta classe. No quinto, de produzir tanto a crítica frontal à reificação desta consciência e de fundamentar a relação entre teoria e prática característica dessa consciência.

(I)

Como é possível compreender a história?

A exposição parte do princípio de que “nada ocorre na história sem intenção consciente, sem fim desejado”; parte-se, então, das múltiplas vontades dos sujeitos que, agindo em relação ao mundo externo, as efetivam. Mas, de um lado, porque contra a efetuação da vontade agem também as forças da realidade que limitam sua realização e, nesse limitar, produzem até mesmo resultados contrários ao inicialmente buscados, os motivos que aparecem imediatamente na vontade não podem ser tomados como parâmetro de conhecimento dos seus resultados. Nesse sentido, se se aceitar a representação da vontade como um interior do sujeito que se expressa no mundo como seu exterior, torna-se também necessário aceitar que os motivos que aparecem inicialmente para ele, impulsionando-o à ação, têm importância secundária nos resultados.

Por outro lado, os próprios motivos são condicionados por circunstâncias históricas específicas, porque eles nada mais são do que as condições históricas que, na sua relação com a vontade individual, inicialmente indeterminada, a determina como vontade de algo; são, assim, “causas históricas que agem na mente dos indivíduos” que transmutam-se de condições externas alheias ao individuo para ser consideradas como parte interior da própria determinação da vontade individual.

Assim, identifica-se dos dois lados, tanto na passagem para a efetivação da vontade, quanto na sua própria determinação interna, a persistência das “forças motrizes” da história como limite objetivo que atua na determinação tanto interior da consciência individual quanto no seu exterior e que devem ser reconhecidas na sua realidade independente e imediatamente externa às consciências individuais. Nesse sentido, para Lukács, são essas forças motrizes que devem ser definidas, as “forças que põem em movimento povos inteiros e, em cada povo, por sua vez, classes inteiras; e isso acaba criando uma ação durável e que resulta numa grande transformação histórica”. Lukács identifica no procedimento de defini-las e reconhecê-las a essência do marxismo.

No primeiro momento, a independência dessas forças motrizes se exprime para a consciência como pura exterioridade; e essa expressão se verifica no fato de que “os homens vêem nessas potências uma espécie de natureza, de que percebem nelas e nas suas legítimas relações como leis naturais ‘eternas’.” Isso ocorre porque, ao invés de serem tomadas como forças, o que conservaria seu movimento de contínua externação, são analisadas post-festum, sem o acompanhamento do processo de seu desenvolvimento histórico, quando já atingiram “a estabilidade das formas naturais da vida social”. Com efeito, a análise que toma essas formas sociais como imutáveis busca dar conta somente das suas mudanças de conteúdos, ou seja, estabilizam-se os princípios sociais como eternamente válidos de tal forma que a sua concepção de história padece do problema de que ela teria como causa-final a produção destas formas.

Para Lukács, Marx, ao opor a essa lógica “uma teoria da teoria, uma consciência da consciência” — o que, para Lukács “significa, em muitos sentidos, uma crítica histórica” —, se torna capaz de “dissolver o caráter fixo, natural e não realizado das formações sociais; ela as desvela como surgidas historicamente e, como tal, submetidas ao devir histórico em todos os aspectos, portanto, como formações predeterminadas ao declínio histórico.” Nesse sentido, as formações sociais resultantes das forças motrizes da história são consideradas como tal; suas determinações formais devem ser expostas como se desenvolvendo de certa relação de forças que se conformou, mas permanece se movimentando. A história, então, se torna a “história dessas formações”, que passam de uma para a outra num processo constante de transformação: porque as forças motrizes se atualizam somente por meio da ação individual consciente, esta transformação é compreendida “como formas da reunião dos homens em sociedade”, iniciadas a partir de relações econômicas objetivas — no momento mais inicial, poderia-se deduzir, pela relação do homem com a natureza inicialmente externa, cuja mediação se dá no processo teleológico do trabalho — que passam a dominar todas as relações dos homens entre si.

Com Marx, Lukács percebe que é justamente isso o que o pensamento burguês não pode conceber, e isto porque “seu ponto de partida e sua meta são (…) a apologia da ordem existente das coisas ou, pelo menos, a demonstração de sua imutabilidade”. O pensamento burguês (por determinações específicas de sua posição de classe, como veremos) se expressa a partir de constructos teóricos que apresentam a formação social de modo estável e estabilizado. Com esse pressuposto, se estabelece um limite para este pensamento compreender o processo histórico, porque ele alterna entre duas visões contraditórias: de um lado, ao elevar os princípios formais de organização social do presente à posição de leis eternas da natureza, desaparece a possibilidade de compreensão da origem daquelas formações; de outro lado, ao suprimir do processo histórico qualquer sentido e deter-se na mera individualidade das épocas e dos indivíduos, a história torna-se “o reino irracional das potências cegas, que no máximo incorpora o ‘espírito do povo’ ou os ‘grandes homens.’”

No primeiro caso, a história fixa-se num formalismo meramente pressuposto, sem seu conteúdo fundamental, qual seja, as relações entre os homens: a forma social é afastada dos homens “por uma distância intransponível” e não mais se percebe que estas formas são exatamente produtos humanos. No segundo, por se recusar a produzir um princípio primeiro, as tais ‘forças cegas’ jamais podem ser concebidas racionalmente, apenas descritas pragmaticamente; torna-se passível apenas de “organização estética”. Ou ainda, como em Kant, onde essas duas tendências encontram uma síntese na concepção da história como “puro material, sem sentido em si mesmo, da realização dos princípios atemporais, supra-históricos e éticos”, metas definidas como externas a eles pela divisão entre pensamento/prática.

É por essa lógica que se põe o dilema com que começamos a análise; mas, com Marx, contudo, expõe-se a verdade do dilema, verdade esta que só encontra seu fundamento nas condições atuais da própria formação social: ele “só revela que o antagonismo próprio da ordem da produção capitalista se reflete nessas concepções opostas de um mesmo objeto”. Ele exprime, nos seus dois lados, apenas “o abandono dos homens da sociedade burguesa às forças produtivas”. Isto porque, pelo processo de reificação que decorre do fetiche da mercadora, o próprio movimento social adquire a forma de um movimento de coisas ao qual o indivíduo está submetido e é incapaz de controlar; e deste modo, resta para ele ou encontrar as leis desse movimento de coisas como meramente externo ou agir diante dele pragmaticamente, abandonando a referência à significação, porque o fundamento do movimento está para além dele e, por isso, lhe é externo.

Com a crítica histórica de Marx, o capital — “e, com ele, toda forma de objetividade da economia política” — perde seu caráter de eternidade e se revela como produto das relações entre os homens. Isto não significa, contudo, que Marx se apoie em outro princípio, tão irracional quanto, de meramente afirmar a importância absoluta da individualidade diante do processo, mas de reposicioná-la no interior desta dialética, porque “a eliminação da objetividade hostil ao homem, atribuída às formações sociais e ao movimento histórico, simplesmente a reduz à relação dos homens entre si enquanto seu fundamento, sem com isso abolir a sua conformidade com as leis e sua objetividade, independentes da vontade humana e, em particular, da vontade e do pensamento do indivíduo”. É nisso que consiste para Lukács a essência do marxismo, como apenas indicado no início e agora desdobrado: consiste no reconhecimento da objetividade das forças motrizes como “mera autoobjetivação da sociedade humana numa etapa determinada da sua evolução” cuja “conformidade a leis é válida somente no âmbito do contexto histórico que ela, por sua vez, produz e determina.”

A questão sobre a consciência individual ou particular retorna mais uma vez porque, uma vez posto este movimento, parece que “todo o papel decisivo no processo histórico estaria sendo subtraído da consciência”. Isso ocorre porque, como o produto do processo das relações humanas se autoobjetiva numa formação social constituída como aparentemente externa, tanto a ação quanto o conhecimento da consciência singular só pode ser compreendido na sua verdade como parte do próprio movimento posto pela formação. Com isso, para Lukács, não se tratou de negar que os “reflexos conscientes das diversas etapas do desenvolvimento” fossem relevantes, nem de negar que “os homens cumprem e executam conscientemente seus atos históricos”; contudo, como vimos, por causa da unilateralidade constitutiva deste modo de pensar, esta consciência é apenas falsa consciência. Porém, apenas constatar a falsidade desta consciência não é o suficiente; na medida em que ela é um dos aspectos da totalidade histórica à qual pertence, coloca-se a exigência da compreensão do seu lado verdadeiro, sua forma e seu conteúdo como etapa do desenvolvimento do processo histórico. Nesse sentido, aquele lado da consciência burguesa que busca fundamentar sua aspiração de concretude nos indivíduos empíricos só é capaz justamente de tocar o lado mais abstrato — poderia-se dizer até mais abstrato que a busca por leis naturais —, porque não há, nessa representação, o reconhecimento da sociedade como totalidade concreta, isto é, “a organização da produção num determinado nível do desenvolvimento social e a divisão de classes que opera na sociedade”. Desse modo, a posição dos indivíduos só pode ser reconstruída na sua verdade na reflexão que o reintegra como aspecto refletido da totalidade.

Fazer a crítica da abstração é produzir um “estudo concreto” e significa, portanto, o atualizar da consciência na sua “relação com a sociedade como totalidade”, porque é somente “nesta relação que se revela a consciência que os homens têm de sua existência, em todas as suas determinações essenciais”. Esta relação, da consciência para a sociedade como totalidade, se determina como uma relação duplamente dialética: num lado, a consciência aparece como “algo subjetivamente justificado na situação social e histórica”, que deve ser compreendido como correto; ao mesmo tempo em que aparece como “algo que, objetivamente, é passageiro em relação à essência do desenvolvimento social, não se conhece e não se exprime adequadamente” e, portanto, como falsa consciência. De outro lado, essa consciência “revela não ter conseguido alcançar subjetivamente os fins que atribuiu a si mesma” enquanto sabe que “promoveu e atingiu os fins objetivos do desenvolvimento social, que ela não conhecia e não desejou”. Desse modo, aquela mera descrição da posição da consciência individual, por meio de sua própria dialética interna, se constitui agora como “material — muito importante, é verdade — dos estudos históricos propriamente ditos”; sua abstração agora é superada e compreendida no seu sentido concreto. Pode-se colocar a categoria da possibilidade objetiva.