tem algo bem estranho nesse filme, algo que parece ser exatamente aquilo que lynch captou: para encontrar o assassino, seria preciso ao detetive mexer no passado de laura e somente ao descobrir quem era o homem na casa dela seríamos levados para dentro dos segredos que aquele belo quadro escondia... mas então bessie se interpôs modificando a cena do crime para preservar a imagem de laura — algo ou alguém que a outra laura nunca pôde ter — e assim, ao detetive (e nós) se apaixonar pela laura, algo de absolutamente sobrenatural acontece: a propria morta retorna à vida como se nada tivesse ocorrido e não como sua própria prima, não como sósia, mas ela mesma, realizando os desejos do detetive apaixonado. tudo parece surreal a partir de então. é como se todo o filme desse um passo para trás, como se agora ele precisasse se restabelecer para continuar preservando esta imagem angelical e cada vez mais artificial de laura. seu romance pelo detetive é mal desenvolvido e o desenlace final absolutamente inverossímil, mesmo impossível: o filme havia acabado de estabelecer que a maçaneta não abriria por fora, nem os próprios policiais conseguem abri-la novamente. cria-se o grand finale no qual o próprio narrador da história, narrando a própria cena pelo radio, vem à tona como assassino e, ao sacrificar-se, preserva a vida da própria laura. por meio de mais uma torção — tão absurda quanto a anterior, diga-se de passagem — o filme busca desesperadamente salvar sua musa. quase como um apelo desesperado de um amigo escritor esforçando-se para negar o trauma recente de perder a sua amada, sublimando a perda e a negação numa belíssima história de crime e traição. todo o necessário para não reconhecer a desgraça absoluta na qual essa mesma perda o enfiou, bem como a destruição da bela imagem que tanto se esforçou para construir e nutrir: era mesmo necessário fotografá-la nessas condições hediondas? a pergunta final que poderia sustentar essa hipótese é: por que at all seria necessário criar todo esse encobrimento? aqui o lynch responde: pela impossibilidade de dar conta quem é o assassino. porque todos são suspeitos e nenhum é, e porque revirar o passado revela muito sobre todo o contexto, e destrói de fato todas as idealizações, mas nem sempre responde claramente a dúvida sobre o Quem efetivo, a impossibilidade de produzir o luto até o final pela ausência da narrativa impele a todos — detetive, noivo, amiga fura-olho e principalmente o melhor amigo — a se sujeitarem ao absurdo de criar uma mitologia que dê conta de deitar a cabeça no travesseiro e dormir satisfeitos pelo reconhecimento imaginário de seu papel e importância na vida daquele que se foi. sendo movido pelo ciúme e amor extremo, nada mais confortável que retomar o controle assumindo para si mesmo o papel derradeiro que se confunde com o reforço da culpa mais absoluta. tudo isso retorna então nessa imagem, no tiro desferido diretamente no peito, no cair no chão podendo confessar seu amor pelo menos uma última vez: eu morreria em seu lugar, laura, se pudesse. se pudesse...