Como qualquer filme do Lanthimos, é um filme absolutamente desconfortável. Os quadros com os personagens sempre descentralizados, o olhar da câmera sempre através de algo dando essa sensação voyeur, as relações completamente frias entre os personagens, as falas calmas — mas, na verdade, apenas soulless de absolutamente todo mundo… É simplesmente uma tensão infinita. Abaixo algumas reflexões recheadas de spoilers… espero não pecar pelo excesso de cristianismo haha.

  1. A relação de Steven com Martin é claramente efeito da completa incapacidade de Steven de lidar com o fato de que ele é responsável pela morte do pai de Martin. As mentiras que é obrigado a contar para justificar ou omitir sua relação com o menino apenas escondem sua vergonha em relação ao que ele fez. Sua negação imoral em relação à responsabilidade de um cirurgião para com as consequências da sua cirurgia demonstram o quanto ele vive envolto na repressão da sua culpa. A cena inicial em que Steven remove suas luvas ensanguentadas e as joga no lixo indicam justamente o caráter desse personagem: não é que ele lave suas mãos em relação às situações, as luvas protegem suas mãos de estarem sujas em primeiro lugar. São belas mãos, limpas, macias, brancas, lavadas com muito rigor: para ele, elas jamais estiveram sujas. Não é como se Steven não tivesse tido chances de tomar responsabilidade pelos seus atos, afinal ele estava em contato com Martin já há bastante tempo. Mas, ao contrário, o que Steven tenta é aproximar Martin por fora da situação de modo a mantê-lo distantemente perto. O que move Steven é a culpa: ele tenta aproximar Martin por meio dela, para dela tentar salvar-se: isto é, conseguir o perdão sem que tivesse de se reconhecer na situação em primeiro lugar. Ao ser claramente confrontado numa situação onde ele não poderá escapar sem estar diretamente responsabilizado, assistiremos Steven tentar fugir de novo e de novo da responsabilidade. Primeiramente, entrará em negação completa. Tudo está bem, apesar de não estar bem. Se não está bem, então a culpa é das próprias vítimas: apesar de já saber exatamente do que se trata, Steven ainda quer se convencer de que Bob está fingindo. A conversa com o diretor da escola é claramente a tentativa mais patética dele de tentar defletir da responsabilidade do que ele terá de fazer: colocará o peso da responsabilidade no diretor, não em si mesmo. Ao perceber que a própria escolha é insuportável, ele sequestra Martin e tenta sair da situação novamente por fora dela: aponta uma arma na cabeça de Martin para forçá-lo a sair da decisão. Quando percebe que tudo isso será inútil e, principalmente, que não há mais tempo algum, Steven coloca seu capuz e, girando, atira a esmo de modo que seja completamente impossível que ele mesmo possa confrontar a decisão sobre em quem ele atirará. A questão é que, mesmo que gire para sempre, Steven sempre terá a escolha de parar agora ou depois e, ao ver o sangue escorrendo do corpo do escolhido, todas essas abstrações que ele criou para esconder de si mesmo que foi ele quem puxou o gatilho se tornam completamente sem sentido.

  2. A morte do escolhido é, na verdade, escolha de todos anteriormente. Ao matar Bob, Steven realiza todos os desejos de todas as pessoas. Kim explicitamente diz que prefere que Bob morra; Anna explicitamente diz que prefere que morram qualquer um dos filhos. Bob não tenta colocar ninguém em seu lugar, apenas debilmente tenta dissuadir seu pai de matá-lo através de realizar suas vontades. Na hora H, o rifle seleciona justamente aquele cuja morte já era a escolha tácita de todos na sala, o único cujo peso moral da morte poderia ser distribuído entre todos os presentes. A decisão cega da justiça é, na verdade, a decisão de todos os presentes que, ao fingir nunca terem-na influenciado, apenas a selam como um outro inexorável. A escolha de Steven de vendar-se e vendar a todos os presentes é justamente o modo pelo qual não somente ele poderá esconder de si a sua imoralidade, mas também impedirá a todos de produzir a imagem objetiva daquilo que realmente está acontecendo: ele matou seu filho. Pela venda, a morte caiu do céu — e justamente aquela que mais agradará a todos e que manterá a família unida, apesar de tudo.

  3. A vendetta funciona assim: se um outro mata meu irmão, terei de matar o irmão daquele. Mas o irmão daquele tem um filho, que jurará matar meu pai por tê-lo tirado o seu. Matando meu pai, minha família jurará eliminar o patriarca daqueles, por ter tirado de nós nosso patriarca. E assim, gerações e mais gerações entrarão nessa guerra sangrenta que solicitará infinitamente mais e mais sangue — sangue este que jamais cessará de jorrar, enquanto nós nos lembrarmos. O que inicialmente aparece como retribuição logo se tornará o modo preciso pelo qual a retribuição jamais chegará, porque quando o sangue jorra, jamais parará de jorrar novamente. A verdade da vendetta está no fato de que a justiça jamais poderá chegar, porque não há equivalência possível de ser alcançada depois que o primeiro corpo cai ao chão. Segundo o cristianismo, o processo infinito só poderá ser cessado quando um de nós abrir mão de continuar matança, quando um de nós não mais reconhecer o outro como um inimigo, that is, quando um de nós reconhecermos a nossa própria demanda por sangue como um problema. (Ou então, a outra possibilidade para o fim da vendetta é aquela pela qual todos os membros da família são completamente dizimados.) Como para Jesus a pretensão pela justeza da nossa crueldade é justamente o que retroalimenta a crueldade em primeiro lugar, só resta a ele sacrificar-se a si próprio segundo as regras dos homens para que, dessa forma, a injustiça infinita – e infinitamente compartilhada – do seu sacrifício valha para rebalancear a injustiça à qual fomos todos submetidos: todos participam desse pecado. Desse modo, o sacrifício do cervo sagrado assemelha-se fortemente ao sacrifício da ovelha perfeita: daquele mais externo possível à toda a situação, o único que foi capaz de não exigir a morte de nenhum outro, o único que não julgou seu pai diante da exposição do seu segredo mais medonho: em suma, o único sem pecado algum. A sensação uneasy do final do filme, a sensação de que o ciclo jamais deveria parar, de que Steven deveria reagir é exatamente a sensação daquele momento em que a pretensão por justiça desmorona completamente. Nunca mais haverá Bob. Resta a Steven apenas sair do restaurante e viver seu luto como um problema seu; resta a Anna encarar Martin com ressentimento, porque agora a situação inverteu-se e é ele um dos responsáveis pela morte de seu filho; resta a Kim negar aquilo que ela aprendeu com Martin. Sairão todos juntos, unidos pela injustiça infinita e impagável da morte de seu irmão. Mas, porque a morte partiu das mãos de Steven, o ciclo da dor está completamente fechado nela mesma. Porque a morte partiu das mãos de Steven e foi compartilhada e assentida por todos, revelou-se a responsabilidade de todos os presentes. Porque a morte partiu de dentro da casa, não há mais vendetta, nem sua pretensão, apenas a injustiça infinita que pretende contrabalancear todas as outras, da qual todos ali participaram, todos são responsáveis e culpados e, diante do pecado e imoralidade infinitos, todos encontram suas posições. E, é claro, se isso parece tão injusto e tão doloroso… It’s because it is. Talvez Nietzsche possa dizer algumas coisas sobre isso. Não sei.