No prólogo de História e consciência de classe, justificando o caráter ensaístico dos estudos que compõem o livro, em tudo distintos de um "desenvolvimento cientificamente completo e sistemático", Georg Lukács - para além da consideração formal de que se trata de uma reunião de "escritos de circunstância" realizados no âmbito do trabalho partidário - aduz uma expicação para a ordenação do conjunto: ao visar o estabelecimento do ponto de vista do "marxismo ortodoxo", trata-se de uma tentativa de compreender e esclarecer a "essência do método de Marx". A ortodoxia, aqui suscitada pelo confronto, então em pleno vigor, entre concepções, escolar e práticas políticas bastante diferenciadas, numa contraposição que ameaçava instaurar de forma inexorável a dispersão e a fragmentação na tradição do marxismo, prende-se, sem mais, à resolução de "determinadas questões teóricas do movimento revolucionário". Lukács indica, assim, de antemão o campo em que se situa, não deixando dúvidas acerca da sua filiação ao movimento comunista, um dos dois troncos no qual cindiu-se irremediavelmente a árvore do marxismo ao longo de um processo que data das divergências acerca do caráter da sociedade capitalista no início do século, mas que se cristalizou mesmo apenas depois de 04 de agosto de 1914 e do êxito bolchevique de 1917.

A autocompreensão desse movimento, sua diferenciação perante as restantes alas da social democracia com as quais se convivia anteriormente, mais ou menos pacificamente, no interior da Segunda Internacional, já havia sido estabelecida, no âmbito político, pelos escritos de ênin e Rosa Luxemburg(1). (1) Ver, principalmente, Luxemburgo, A Crise da social-democracia e Lênin, A Revolução proletária e o renegado Kautsky.

A primeira vista tratava-se apenas de complementar, enfocando primordialmente a dimensão teórica, as críticas de Lênin e Rosa Luxemburgo a Karl Kautsky que, nessa ótica, era quem encarnava melhor o espírito da social-democracia. Embora, no terreno da discussão política propriamente dita Lukács pouco se afaste de Rosa Luxemburgo e Lênin ora aplainando as divergências entre eles, ora pendularmente orientando-se em direções opostas(2), a sua ambição teórica vai além: Lukács almeja compreender e esclarecer também a essência do método de Rosa e Lênin, o que não seria demasiado, pois seus esforços intelectuais e práticos derivariam de uma compreensão correta do método de Marx. (2) Acerca dessa oscilação cf. Nobre, "Lênin e Rosa Luxemburgo em História e Consciência de Classe".

Mas, por que essa ênfase no método, por que concentrar-se nos pressupostos e nas consequência metodológicas de escritos aos quais deliberadamente falta o tom autoreflexivo? Mais do que o resgate da relevância da estrutura teórica subjacente aos textos para a compreensão da trajetória política de Rosa Luxemburgo e Lênin, interessava a Lukács reafirmar, paradoxalmente, a pertinência prática do marxismo. Para ele, a experiência histórica dos anos recentes com sua sequência inaudita e inesperada de acontecimento extraordinários - a guerra imperialista, a crise do capitalismo e a vaga revolucionária que varria a Europa - só pode ser compreendida pelo método dialético.

Instrumento único de conhecimento do presente histórico, via correta para a compreensão da sociedade e da história, o método e a doutrina de Marx - tal como atualizados por Rosa e Lênin - formam a base do marxismo ortodoxo. A ortodoxia não reside na pretensão de preservar a "integridade estética" do sistema de Marx, mas em destacar a essência mais íntima - histórica - do seu método ou em ressaltar o seu centro vital - "a dialética concreta e histórica".

Embora ressalte a fecundidade desse método na resolução de problemas de outro modo insolúveis e exalte a sua fertilidade nos escritos de Rosa Luxemburgo e Lênin, Lukács não hesita em alertar que "muitos aspectos, absolutamente essenciais do método de Marx caíram indevidamente no esquecimento". Com isso, uma apropriada "compreensão da dialética tornou-se difícil e quase impossível".

Uma dimensão desse esquecimento, já se suspeita de antemão, tem nome próprio: Georg Wilhelm Friedrich Hegel. O esquecimento da dívida de Marx para com Hegel gerou, segundo Lukács, uma série de deturpações: (a) a consideração da dialética em Marx como mero acréscimo estilístico a ser eliminado em nome do conhecimento científico; (b) a não observância de que todo um conjunto de categorias decisivas continuamente utilizadas por Marx em O Capital foram desenvolvidas antes na Ciência da lógica de Hegel; (c) a recusa da interpretação, estabelecida por Engels e Plekhánov, que considera o movimento operário "herdeiro da filosofia clássica alemã". A busca de conexões metodológicas entre Hegel e Marx, o propósito explícito de suscitar, por meio desse material e dessa orientação, repondo na ordem do dia, o debate sobre a dialética de Marx, inscrevem-se em um programa mais abrangente voltado para a compreensão da coesão efetiva e sistemática do método de Marx. Ao perseguir esse objetivo, Lukács afasta-se, em vários ensaios do livro, como ele próprio admite no "Prólogo", daquilo que seria a meta superior do marxismo: a tomada de posição acerca dos problemas atuais. Uma vez posta assim a questão, em termos metodológicos, a palavra de ordem de defesa do "marxismo ortodoxo", obriga-o a um desvio, aparentemente fiel à essência histórica dessa tradição, levando-o a tomar como objeto de estudo ora o próprio marxismo ora a interpretação da obra de Marx (3). (3) "Um marxista ortodoxo sério proderia rejetiar todas as teses isoladas de Marx, sem por isso, por um só momento, se ver forçado a renunciar à sua ortodoxia marxista. O marxismo ortodoxo não significa, pois, uma adesão sem crítica aos resultados de pesquisa de Marx, não significa uma fé numa ou noutra tese, nem a exegese de um livro sagrado. A ortodoxia em matéria de marxismo refere-se, pelo contrário, e exclusivamente ao método" (Lukács, História e consciência de classe, p. 15).

Deixando de lado uma possível hierarquia de assuntos ou mesmo a questão das implicações práticas dos temas abordados, é a capacidade de dar conta simultaneamente desses três objetos distintos - o mundo atual, a história do marxismo e a coerência lógica da doutrina de Marx - que passa a valer doravante como medida e padrão para a aferição da eficária, da pertinência e inclusive da veracidade e validade de toda e qualquer interpretação que se queira herdeira do legado de Marx.

Lukács pretendia apenas por em destaque, chamando ao primeiro plano, determinados pressupostos e consequências metodológicas que não foram explicitados nem nos escritos de Marx nem nos recentes textos de Rosa Luxemburgo e Lênin, dotados de assombrosa pertinência prática. Mostrar que essa atualidade, ou ainda que a própria essência prática do marxismo, dependia de uma dimensão teórica latente e nem sempre muito visível, essa pretensão bem modesta de Lukács foi apenas um primeiro passo, a pequena fresta de uma porta que posteriormente o marxismo dito ocidental nunca cessou de arrombar (4). (4) Resenhando um livro de Ruy Fausto, Paulo Arantes, a partir de um outro ponto de vista, local - isto é, brasileiro - e em outro momento - terminal - ressalta a continuidade do mesmo procedimento instaurado por Lukács, e detectado por Perry Anderson, ao longo do Marxismo Ocidental: a discussão interminável acerca da questão de método. Segundo ele, o traço mais saliente da tradição do marxismo ocidental seria "o metodologismo obsessivo, a um tempo eclipse da teoria, enquanto discurso racional acerca de um domínio particular de fenômenos, e elevação da mesma ao quadrado, evaporando-se em consequência o objeto real" (Arantes, "Um Capítulo Brasileiro do Marxismo Ocidental, p. 4).

Enquanto movimento incessante de explicitação de premissas e determinações teóricas latentes no corpus da obra ou da doutrina de Marx, o marxismo ocidental é tributário, seguindo um encadeamento lógico bastante previsível, da adoção reiterada da primazia do método. Mas também cabe observar que se essa linhagem, acompanhando a ênfase metodológica de História e consciência de classe, transformou o marxismo em um conjunto de discursos do método, foi sob essa forma, hibernado em discussão teórica, que ele conseguiu se preservar em condições bastante adversas.

Além disso, se visto retrospectivamente, História e consciência de classe aparece como a faísca detonadora de uma série logicamente previsível, tal posição de forma alguma estava dada de antemão. Afinal, a sucessão de autores e obras que configura o marxismo ocidental só se firmou, adquirindo efetividade histórica, graças a um conjunto de circunstâncias em tudo alheias à conjuntura teórica e prática em que Lukács escreveu este livro (5). (5) José Paulo Netto (em "Lukács e o Marxismo Ocidental", pp. 14-15) salienta, com pertinácia, que a posterior incorporação de alguns dos conceitos-chave de História e consciência de classe em obras inseridas em quadros históricos-sociais distintos se deu ao preço de uma metamorfose de suas determinações originais.

Uma contraprova disso é o fato de que, ao contrário do que comummente se propaga, História e consciência de classe não foi a primeira obra de linhagem marxista a enfatizar o método. O livro de Lukács foi precedido por toda uma tradição, na qual o antecessor mais ilustre é o Anti-Dühring de Friedrich Engels (6). (6) Esses textos foram comuns entre os contemporâneos do último Engels, a geração de Plekhánov, Mehring, Labriola e Kautsky. Karl Kautsky, em polêmica com Bernstein, chega mesmo a dizer que: "é o método que resulta da aplicação da concepção materialista da história à política: graças a ele o socialismo tornou-se uma ciência (...) No socialismo marxista o essencial é o método, não os resultados" (citado por Georges Haupt, em "Marx e o Marxismo", p. 369).

Esse predomínio do método, no caso de Engels, talvez tenha sido involuntário. No Prefácio à primeira edição, em junho de 1878, Engels explica que, instado pelos companheiros da social-democracia alemã, a combater as ideias de Eugen Dühring, o mais recente "adepto e reformador" do socialismo(7), aproveitou a "ocasião para expor em forma positiva os assuntos mais diversos (...) concepções sobre as questões controvertidas que apresentam hoje interesse científico e prático mais geral" (Engels, Anti-Dühring, p. 5). (7) Engels afirma que relutou muito e que só concordou em cumprir a tarefa, a contragosto, preocupado com a unidade teórica de um jovem partido ainda em formação. A partir dessa afirmação, Iring Fetscher atribui o tipo de marxismo desenvolvido por Engels, acusado de "eliminar a função revolucionária da consciência e da categoria de totalidade", à tática decorrente de organização do proletário em partidos (cf. id., Karl Marx e os marxismos, pp. 159-60)

O êxito inesperado do livro - uma reunião de artigos publicados em um importante (e bastante lido) órgão da imprensa operária alemã, o jornal Vorwärts -; a demanda, alguns anos depois, por uma segunda edição e principalmente o sucesso espantoso de um opúsculo que condensando o Anti-Dühring fez carreira internacional com o título, dado por Lafargue, Do socialismo utópico ao socialismo científico deixou o próprio Engels surpreso. Afora as pré-condições óbvias desse sucesso editorial, a expansão inaudita da atenção pública, agora mundial, acerca de tudo o que se referia ao marxismo ou mesmo a proibição do livro pelo Império alemão, como explicar a permanência do interesse por uma série de artigos destinados a refutar as ideias de Dühring, já por ocasião da segunda edição, um ilustre desconhecido?

A resposta de Engels no Prefácio à segunda edição comporta um adendo, aqui particularmente importante, à explicação oferecida junto com a primeira edição: "a crítica negativa resultou positiva; a polêmica transformou-se em exposição mais ou menos coerente do método dialético e da ideologia comunista defendida por Marx e por mim, numa série de domínios bastante vastos" (Engels, Anti-Dühring, p. 9).

Somente a cautela e o comedimento de Engels após a morte de Marx (8) explica o seu cuidado em evitar ressaltar aquilo que salta aos olhos: o Anti-Dühring, principalmente em sua introdução, reproduzida também em Do socialismo utópico ao socialismo científico, contém uma apresentação sucinta de um assunto que constitui um dos brancos da obra de Marx. Uma vez que tal texto foi escrito quando Marx ainda estava vivo e a feitura do livro contou inclusive com sua colaboração (na redação de um capítulo da parte consagrada à economia política), não é de se espantar que os contemporâneos, e mesmo a posteridade, tivessem enxergado aí a exposição - frequentemente exigida de Marx e ansiosamente aguardada - de seu método. (8) Sempre que julgava necessário reconstituir a história da formação do materialismo histórico, Engels atribuía a si mesmo um papel secundário, como na seguinte passagem de Ludwig Feuerbach e o fim da filosofia clássica alemã: "Que tive certa participação independente na fundamentação e sobretudo na elaboração da teoria, antes e durante os quarenta anos de minha colaboração com Marx, é coisa que eu mesmo não posso negar. A parte mais considerável das ideias diretrizes principais, particularmente no terreno econômico e histórico, e especialmente sua formulação nítida e definitiva cabem, porém, a Marx. (...) Ele tinha mais envergadura e via mais longe, mais ampla e mais rapidamente que todos nós outros. Marx era um gênio; nós outros, no máximo, homens de talento" (id. op. cit., p. 103). Sobre o papel de Engels nesse processo cf. Jones, "Retrato de Engels", p. 394-421.

Embora nesse Prefácio, Engels apenas aluda, modestamente, à necessidade "de tornar a dialética, em toda a sua simplicidade e valor universal, acessível ao espírito" e sequer arrole explicitamente a sua exposição como uma das causas do êxito editorial, não resta dúvida que a chave desse sucesso deriva, em grande parte, da recepção que tomou esse trecho comum aos dois livros como uma breve e autorizada apresentação da dialética marxista.

A novidade dessa exposição, que certamente não passou desapercebida aos contemporâneos, mas que adquiriu com os anos ares de naturalidade, é o esforço de Engels - completamente ausente na obra de Marx - em descobrir e desenvolver as "leis da dialética" partindo da natureza ou ainda a crença de que a mera acumulação de fatos nas ciências naturais conduz inevitavelmente esse saber a percorrer os trilhos da dialética. Haveria inclusive, segundo Engels, uma completa homologia entre esse domínio com suas inúmeras mutações e o reino da história, onde a trama aparentemente fortuita dos acontecimentos segue as mesmas leis (também presentes na evolução do pensamento humano). Dessa forma, Engels não hesita em afirmar que "uma concepção da história, ao mesmo tempo dialética e materialista, exige o conhecimento das matemáticas e das ciências naturais"(9). (9) Dentro desse espírito, Engels estabelece, de passagem, uma analogia deveras impressionante, concebendo uma nova linhagem que felizmente não chegou a desenvolver: os filósofos da natureza, apesar de não reconhecerem na natureza nenhum desenvolvimento no tempo, privilegiarem a coexistência em vez da sucessão (seja por influência do sistema hegeliano, seja pelo estágio das ciências naturais em sua época) estão "para a ciência natural conscientemente dialética, na mesma situação em que se acham os utopistas para o comunista moderno" (Engels, Anti-Dühring, p. 11, nota)

Pode-se ver aí, principalmente nessa última frase, a aposta de um pensador que dedicou parte de seus últimos anos de vida a acompanhar o avanço, então "vertiginoso", do conhecimento da natureza ou mesmo um empenho em "atualizar" e "complementar" a doutrina do Marx abordando assuntos pouco tratados por ele que passaram a desempenhar um papel decisivo no debate ideológico da época. Aqui, porém, importa mais destacar os delineamentos sobre os quais firmou-se essa versão do método de Marx.

Em sua apresentação da dialética, Engels, apesar de lhe conceder a primazia, não a põe em cena sozinha. Junto e incessantemente contraposto a ela, emerge um outro método filosófico, rival e concorrente, a "especulação metafísica"(10). Para o adepto dessa metodologia, "as coisas e suas imagens no pensamento, os conceitos, são objetos isolados de investigação, objetos fixos, imóveis, observados um após o outro e cada qual de per si, como algo determinado e perene" (Engels, Anti-Dühring, p.20). A atribuição de rigidez ao objeto, a descrição precisa de seus contornos, a determinação do mundo como um conjunto de coisas acabadas e imutáveis, a observância estrita do princípio da não-contradição, a conexão irreversível de causa e feito, devem muito de sua plausibilidade à sua proximidade com o senso comum. No entanto, adverte Engels, apesar de útil entre as quatro paredes de uma casa, o senso comum revela-se pouco apropriado quando se arvora em método científico. (10) Em Ludwig Feuerbach e o fim da filosofia clássica alemã, Engels atribui a origem dessa nomenclatura, hoje pouco usual, a Hegel (id., ibid., p. 105). Imagino que se trata de uma apropriação bastante livre e pouco fiel de uma passagem da Enciclopédia na qual Hegel nomeia a primeira posição do pensamento relativamente à objetividade como "metafísica" (parágrafos 26 a 36). Com esse termo Hegel designa tanto o saber filosófico constituído imediatamente antes da filosofia kantiana, quanto um modo de "pensar diretamente os objetos" próprio da "filosofia incipiente, das ciências, do agir e da prática quotidiana".

Já Lucio Colletti - ao salientar a sobrevivência da crítica hegeliana do entendimento - atribui o uso desse termo em Engels a uma tentativa de identificar o modo de pensar que assume o princípio da não-contradição (cf. id., Il marxismo e Hegel, t. I, p. 106).